20091212

documento interno

A empresa nacional, inserida na estrutura de uma multinacional, tinha em Janeiro o que era provavelmente um dos seus maiores momentos anuais de tensão. O relatório da actividade do ano anterior tinha de ser enviado para a sede. Ano após ano, a rotina, apesar de diagnosticada como errada pelos próprios decisores da empresa, repetia-se. Reunião atrás de reunião, conflitos inter - departamentais, "draft" atrás de "draft" até a impressora entrar em coma. O resultado era sempre, como se dizia na sede, o envio "dos relatórios e do livro português".O plano posto em execução estabelecia antes do mais dois princípios básicos: o texto, neste caso o relatório, é apenas o passo final de um longo processo e é necessário dar uma oportunidade ao tempo. Com dez meses para executar o plano, foi escolhida uma pessoa de cada departamento para compilar e fazer uma primeira síntese contínua das actividades relevantes, à medida que estas se realizavam. A task-force não reuniu uma única vez durante o ano. A troca de informações foi feita em rede, num local digital da empresa. Dois meses antes do prazo, as sínteses dos departamentos foram reunidas e trabalhadas pela Sniper. O trabalho foi, mais uma vez, de síntese final e, depois, de moldar a coerência e elegância do texto final. Pela primeira vez, a empresa enviou um documento mais pequeno do que o limite de 10 páginas estabelecido. Hoje, o "portuguese model" é o standard dentro da multinacional.

20091101

um político de memórias adiadas

O político, que tinha tido intervenção de relevo em vários domínios dos negócios públicos, achava que tinha algumas coisas a contar. O contacto, da sua iniciativa, foi feito. A partir do que sabia da sua vida, achei igualmente que existia um número suficiente de dados com interesse para partilhar. Foram feitas algumas conversas exploratórias, necessariamente longas. Logo aqui, achei que existia ainda demasiada dispersão na vida do político para este ser capaz de se concentrar num trabalho tão meticuloso. Mas ele insistiu. Foram combinados os temas a tratar, e uma metodologia de trabalho, já de si num formato pouco exigente, o único possível perante a intensidade e a imprevisibilidade que caracterizavam o quotidiano do político. Na verdade, apesar de toda a flexibilidade e adaptação aos imprevistos, o problema era insuperável. A verdade é que o político não era capaz de se resguardar para a tarefa a que se tinha proposto: não fazia o trabalho de casa, não seguia a metodologia, não conseguia manter qualquer regularidade. Não tinha sequer possibilidade de concentração durante o tempo de trabalho em conjunto. Ao fim de alguns meses, aconteceu o inevitável. Os encontros foram rareando, até terem deixado de existir. Perdeu - se muito tempo mútuo e a passagem das memórias a papel terá de esperar por tempos onde menos aconteça.

20091027

as instruções de freaknomics

Superfreaknomics sucede a Freaknomics, e com grande probabilidade será um campeão de vendas global como o seu irmão mais velho. As instruções da série Freaknomics são claras, mas, no entanto, raramente são seguidas em Portugal. Antes de tudo o mais, importa ter um objectivo interessante, neste caso fazer chegar conhecimento científico a todo o tipo de leitor. Dada a complexidade da tarefa, é importante ter um método eficaz. A instrução freaknomics é a de juntar um académico brilhante, o economista Steven D Levitt, e com suficiente estatuto para mobilizar outros académicos, como o sociólogo Sudhir Venkatesh, com um bom profissional da escrita, o jornalista Stephen J Dubner. Levitt, e os seus pares, são os condutores da informação. Dubner é o recolhedor, cuja missão é a de transformar dados científicos em texto acessível e elegante. A instrução seguinte é a de entre os dois ser criado o tempo necessário, ou seja muito tempo, para a informação ser mobilizada, passada, analisada e escrita de forma adequada. A instrução final é o do respeito pelo papel de cada um, e a da não interferência no papel de cada um. Levitt assegura o rigor da informação científica. Dubner a capacidade narrativa necessária para uma investigação académica ser transformada numa boa história. Apliquei esta fórmula com Maria José Morgado, e daqui resultou "O Inimigo sem rosto - fraude e corrupção em Portugal". A julgar pelo volume de vendas, o mercado gostou. Mas, apesar das várias tentativas que fiz, nunca consegui parceiro para repetir o projecto. Ao mesmo tempo, todos os dias são publicados livros no mercado nacional que não respeitam as instruções, fazendo com que dados de enorme interesse público nunca sejam conhecidos. Razões bem portuguesas determinam as duas situações.

20091025

memórias internas da ditadura

Felizmente, o autor, um quadro superior de uma das instituições mais importantes da ditadura salazarista, tinha escrito as suas memórias num computador. O texto, quando o recebemos, estava perto do caos. O testemunho tinha sido escrito ao sabor dos entusiasmos do momento do autor, e, notava - se claramente, em vários períodos de tempo muito distantes entre si.O trabalho de edição obrigava à execução de algumas tarefas clássicas, e algumas outras próprias do texto entregue. Antes do mais, foi preciso ler o original e tentar encontrar um fio condutor das memórias. Esse era um dos principais problemas. O autor queria, no mesmo texto, mostrar o seu conhecimento do Estado salazarista, contar as suas experiências profissionais, partilhar o seu olhar do mundo, e ajustar algumas contas pessoais, com figuras da ditadura mas também com algumas da democracia. A solução encontrada foi a de dividir as memórias em quatro partes isoladas, movimentando e recolocando porções consideráveis de texto. A partir daqui estava criada uma base de trabalho para intervenções cirúrgicas no texto, primeiro ao nível da ordem, depois ao nível do ritmo e estilo. No primeiro caso, optou - se pela solução clássica da ordenação cronológica, primeiro, e temática, depois. A harmonização de ritmo e estilo foi mais sensível. Se nalguns trechos existia emoção a mais, noutros a secura de pormenores imperava. Com a colaboração do autor, fornecendo os dados, criou - se o equilíbrio desejável. O passo seguinte foi eliminar uma das falhas mais comuns das memórias, a repetição de factos e acções em pontos diferentes da narrativa. Aqui o que é exigido é concentração, já que a repetição por vezes dá-se apenas ao nível de um parágrafo. O trabalho de edição passou então para a tarefa mais simples, mas mais sensível já que tocava em sensibilidades pessoais do autor. Na verdade, este, ao longo da sua vida, cultivou três ódios de estimação. E com uma regularidade extraordinária, insultava as três pessoas a cada dez páginas das suas memórias. Após uma negociação intensa, foi concedida a redução da frequência de agressões. O texto ficou límpido, isto é pronto a ser publicado.